E se: Reflexões sobre a viagem no tempo e relações interpessoais

Kauê
5 min readAug 17, 2023

Há, entretanto uma outra categoria: o tempo. Tudo tem um passado e um futuro; tudo procede de um lugar, e se encaminha para outro. E é impossível saber qual seja essa origem e essa destinação, a menos que se tenha o que vulgarmente é chamado “palpite”.

Em primeiro lugar, a ideia de pretérito imperfeito do subjuntivo é assustadora, devido a causalidade de refletir acerca de conjecturas, do que poderia ter acontecido. Sua imaginação e consciência serão as guias neste universo estranhamente multifacetado de possibilidades.

Em via filosófica, a viagem no tempo evoca diversas controvérsias acerca de identidade e livre-arbítrio. Se regressássemos, ainda seríamos as mesmas pessoas? Pois nossas experiências determinam quem somos e, ao alterar o passado, estaríamos nos transformando em seres diferentes — ou produzindo um paradoxo. E em relação ao livre-arbítrio: caso fizéssemos escolhas diferentes, estaríamos agindo de acordo com um plano predeterminado ou digladiaríamos a verdadeira liberdade de escolha?

No campo da relatividade, a viagem no tempo, uma ideia debatida com certa frequência na ficção científica, permite-nos interpelar não somente ao plano físico, mas também os pressupostos éticos e filosóficos que manifestam-se dessa hipotética capacidade de remodelar o passado. A tentação de corrigir erros, evitar perdas e refazer nosso destino parece irresistível. No entanto, essa fantasia é acompanhada por perquisições sobre valor da experiência, a complexidade das ramificações e a própria natureza do tempo.

No delicado tecido das relações interpessoais, há momentos os quais se perpetuam em nossa memória como síntese de conexões que outrora pareciam intransigentes. São laços que, mesmo que temporariamente, nos definiram, determinaram nossa visão do mundo e nos condecoraram com reciprocidade. Todavia, conduzidos pela hermética regência do tempo, essas relações, uma vez vitais, desvanecem, suscitando uma sensação de vazio, uma preciosidade sumariamente desaparecida.

As circunstâncias deste afastamento permeiam as mais diversas: uma mudança geográfica, um conflito mal resolvido, uma valorização de objetivos estritamente pessoais ou, até mesmo, o silêncio ensurdecedor que simplesmente intimam-nos a seguir em frente. O que era o cerne de nossas histórias tornou-se apenas uma discreta nota de rodapé, uma lembrança distante flutuando na amargura do limbo de um lugar onde, outrora, já houve alegria.

Tais relações descontinuadas nos fazem questionar a essência do contato humano. Como algo tão profundo pode ser desmantelado? Como algo que um dia foi o centro do nosso mundo tornou-se uma lembrança tão fragilizada e efêmera? Nossa insaciável busca por explicações constantemente é improlífica, e nos posicionamos a disposição do enigma do tempo e das suas marés de mudança.

De acordo com a teoria do caos, uma alteração aparentemente imperceptível é capaz de influenciar em uma série de mudanças imprevisíveis. E, no domínio da física, onde as leis da termodinâmica condizem que a entropia tende a aumentar, talvez exponencialmente, nossas vidas também integram uma trajetória inexorável em direção à complexidade e ao distanciamento.

Mesmo que fosse possível retroceder no tempo, estaríamos violando as leis fundamentais da física, mais especificamente a dimensão do tempo, a qual flui impreterivelmente do passado para o futuro. A teoria da relatividade de Einstein sugere que, ao ultrapassar a velocidade da luz, poderíamos, em teoria, voltar no tempo. Deve-se ressaltar que tal possibilidade ainda reside no espectro da especulação. Ainda assim, tal postulação nos conduz a questionamentos labirínticos a respeito de causalidade. Se pudéssemos intervir no passado, até que ponto desencadearia uma série de efeitos tais como dominó, borboleta ou teoria do caos? Poderíamos inadvertidamente eclodir um paradoxo, cuja ação no passado poderia colocar em xeque nossa própria existência?

Durante a meditação pelo passado recordamos esses relacionamentos, onde éramos pilares um para outro, onde vivenciávamos e compartilhávamos segredos, risadas, dores e sentimentos. Recordo-me como as palavras e gestos eram profundamente significativos, como a conexão era tangível e inesquecível. E, entretanto, o tempo, com sua implacável linearidade, direcionou-nos a jornadas paralelas.

Quase todas as formas de vida vivem o momento, com o medo resultante da percepção imediata. Somente você, eu e o restante da nossa espécie somos capazes de refletir sobre o passado distante, imaginar o futuro e compreender a escuridão que nos aguarda.

No que tange a ética, a vontade de modificar o passado suscita debates sobre o valor da experiência e da adversidade, de contratempos. Nossos erros e arrependimentos são parte fundamental do nosso itinerário de crescimento e aprendizado. Ao afugentar-se dessas situações, privar-nos-íamos do amadurecimento e evolução. Cada ação resulta em um efeito em cascata; cada mudança reverbera pelo tempo, consubstanciando um caleidoscópio de possibilidades. E mesmo que pudéssemos voltar, quem sou eu para manipular o tecido do tempo? As consequências poderiam ser catastróficas.

Mesmo que pudéssemos reconstituir esses elos perdidos, deveríamos? As relações não são apenas relativamente ao passado; são construídas pelo presente e pelo futuro que vislumbramos. Os motivos que nos aproximaram no passado podem não ser mais relevantes atualmente. Talvez, em nossa incessante busca por reavivar o passado, estejamos menosprezando as possibilidades autênticas que o presente obsequiam-nos.

A reflexão no que concerne a essas relações interrompidas nos esclarece que, assim como as marés do tempo, também respondem a um fluxo inconstante. O que foi, um dia, a base de nossas vidas, pode ser substituído por novos laços e experiências. Contudo, esses momentos serão eternizados em nós como testemunhas do que fomos e do que podemos ser. E, talvez, o aprendizado seja que, embora os vínculos possam ser cessados, a essência de como nos moldam e enriquecem permanece conosco.

Portanto, enquanto a viagem no tempo pode cativar nossa imaginação e proporcionar sindicâncias profundas no que se refere à natureza da realidade, também nos induz à reflexão sobre a relatividade da percepção. Refazer o passado é uma ideia extremamente deslumbrante, conforme proferido pelo romancista L. P. Hartley, “o passado é um país estrangeiro”. Ainda que tivéssemos a capacidade de transgredir a imutabilidade do tempo, talvez seja mais sábio que o passado permaneça inalterado e que avalizemos o presente com todos os seus infortúnios, incluindo nossos erros, conquistas e as lições que este nos propiciou. Abrace o presente, pois o futuro bem cultivado pode ser ainda mais recompensador do que o pretérito mais-que-perfeito, o qual apenas existe em nosso eterno vislumbre de esperança.

Música recomendada: a interessantemente desconhecida Tourniquet do TesseracT.

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Kauê

Escrevo sobre filosofia, psicologia e física. Esporadicamente umas pitadas de astronomia, minha vida em parábolas e alegorias propositalmente ambíguas.