Da redenção ao recomeço: A vislumbrante arte do perdão

Kauê
3 min readNov 19, 2023

A tristeza causada pelos desgostos da vida e pela aflição da morte, as angústias do pecador que lava com abundantes lágrimas as manchas de suas passadas culpas, os lamentos do cristão desterrado neste vale de lágrimas que suspira pela pátria celestial, os amorosos transportes do justo, provado com tentações e trabalhos, que, na mesa Eucarística, busca o alimento de seu valor, e se consola de seus sofrimentos pela grandeza de sua caridade.

Um pedido de desculpas pode não solucionar uma adversidade, mas demonstra humildade e amadurecimento de quem sabe que errou. Torna-se considerável o potencial para transformar a vida do vitimado para sempre e, em contrapartida, uma faceta de dignidade não reconstitui um elo inopinadamente rompido. Em minha singela perspectiva, o pior sentimento, abalizado para dilapidar a paz de um indivíduo, certamente é o de culpa e arrependimento.

Reservo-me o direito de estabelecer confiança, quiçá infindar uma definição ontológica. Os vínculos interpessoais transmitem uma sensação de efemeridade e, aos mais traquejados no campo filosófico, é apenas mais uma no conta-gotas de relações líquidas, a qual se esvairia rapidamente. O princípio da liquidez é intransigível e excruciante.

Se cessasse minha própria dor, deixaria de ser quem sou ou sou apenas o produto de variáveis condicionantes de personalidade? Não é da minha jurisdição estabelecer tal julgamento, tampouco aquilatar os “e se” da presente conjuntura. Apegar-se ao passado também é um descomedido risco à salvação.

O passado, como uma subdimensão do tempo, é uma grandeza imutável, entrelaçada por nossas escolhas, acertos e tropeços; os três últimos constando como objetos de estudo da ética. Para a teoria das cordas, cada fio representa um momento o qual determinou quem éramos. Entretanto, no decurso de que o passado é inalterável, o presente assemelha-se a uma folha em branco ansiando para transcrevermos seu destino.

A graça da existência reside na possibilidade de aprender com nossos erros, amadurecer com nossas experiências, sejam alegres ou dramáticas, boas ou ruins e de merecermos uma segunda chance. A investida de reviver o passado ou carregar seus fardos é uma armadilha que impede-nos de aproveitar o agora adequadamente.

Nossas ações a partir de agora serão a tinta que escreve o presente e, consequentemente, esperança o futuro. Cada decisão, por mais discreta que seja, ramifica novas cordas e reverbera no tecido da nossa existência. É o juramento de um recomeço a cada nascer do sol, uma oportunidade de redirecionar essa narrativa para um final mais condizente com quem almejamos ser, construindo relacionamentos significativos e idealizando um futuro o qual reflete nosso aprendizado.

Responsabilizar-nos por nossas ações é fundamental e, em outra via, também substancial permitir nosso próprio perdão. Uma segunda chance não trata-se de uma oblação que agraciável somente aos outros, mas uma benesse a nós mesmos. Conforme caminhamos adiante, aproveitemos a insustentável leveza de ser quem compreende que a inalterabilidade do tempo, enquanto o presente permanece em aberto e o futuro aguarda seu penejo.

Ao passo que não é possível pulverizar as páginas já registradas, temos a capacidade de influenciar como enredo se desenvolverá. Cada ato de benevolência, coragem, compaixão ou virtude imortaliza um vestígio indelével na história em construção. Tais ações fluem através do tempo, tornando-se o cerne da nossa jornada.

Reconheçamos a responsabilidade, a imprevisibilidade e a beleza do livre arbítrio e, apesar do caráter fantasmagórico do passado, o caminho poderá ser resplandecente caso optemos por escolhas corretas. Estejamos cientes que, no palco da vida, somos os protagonistas de uma história singular e inolvidável. Cada novo capítulo constitui um ensejo único para eternizar o impacto positivo que somamos às pessoas e pelo que gostaríamos de ser lembrados para sempre.

Você não pode apagar o passado mas suas ações a partir de agora jamais serão esquecidas.

Música recomendada: a espetacular All l Have, do Evergrey.

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Kauê

Escrevo sobre filosofia, psicologia e física. Esporadicamente umas pitadas de astronomia, minha vida em parábolas e alegorias propositalmente ambíguas.